Como a dessemelhança fomenta o processo criativo
trilhando conexões entre as coisas distintas do mundo para criar
Crianças são espontâneas e abertas à experimentação. Reforço isso, porque tenho uma irmã criança e sempre, quando desenha, observo como ela se permite criar de forma livre e fazendo conexões entre coisas aleatórias e distintas. Certa vez, ela desenhou uma bruxa pirata conversando com um rei abacaxi. Muito bom!
O experimento de dialogar elementos diferentes, sem muitas expectativas, também me lembrou uma brincadeira que fiz com a minha tia e meu primo: cada um escrevia uma frase em um papel, sem que o outro visse, e depois líamos em voz alta a sequência de frases para ver como ficou o resultado da conexão.
Essa brincadeira rendeu boas risadas e o legal é que já éramos adultos e nos permitimos criar coletivamente de forma espontânea e divertida. Uma das frases que me marcou muito e que não esqueço foi “cosmos no elefante que dá e deixa”. Ficamos refletindo e criando ideias mirabolantes sobre essa maluquice.
Lembro que minha tia sugeriu a brincadeira inspirada na receita de poemas do poeta romeno Tristan Tzara, um dos percursores do movimento artístico Dadaísmo do início do século XX:
Receita de um poema dadaísta:
Pegue um jornal.
Pegue uma tesoura.
Escolha no jornal um artigo do tamanho que você deseja dar ao seu poema.
Recorte o artigo.
Recorte em seguida com atenção algumas palavras que formam esse artigo e meta-as num saco.
Agite suavemente.
Tire em seguida cada pedaço um após o outro.
Copie conscienciosamente na ordem em que elas são tiradas do saco.
O poema se parecerá com você.
E ei-lo um escritor infinitamente original e de uma sensibilidade graciosa, ainda que incompreendido do público.Tristan Tzara
Entrei nessa divagação para refletir sobre como a dessemelhança pode fomentar o nosso processo de criação. Quando trilhamos um caminho de conexões entre as coisas distintas do mundo para criar, elaborando combinações de ideias, materiais ou conceitos que, à primeira vista, parecem desconexos, podemos alcançar narrativas inesgotáveis e autênticas.
Quem também fez isso de uma forma singular e que revolucionou os estudos na história da arte foi o historiador Aby Warburg. Entre o final do século XIX e o início do século XX, ele elaborou um atlas como uma aposta de que imagens distintas, quando relacionadas, ativassem a força nelas contidas, oferecendo um inesgotável recurso de releituras do mundo, da cultura e da arte.
Em homenagem à musa grega da memória, Mnemosine, o projeto recebeu o nome de Atlas Mnemosyne, contando com 971 imagens, reproduções fotográficas das obras originais, dispostas em vários painéis.
Esse atlas promove o encontro entre ilustrações renascentistas e cartazes publicitários, mapas celestes e cartas de Tarô, imagens da antiguidade e da modernidade. As imagens não se aproximam por casualidade ou coincidência, opondo-se, assim, à perspectiva de narrativas que seguem o fio da linearidade.
Didi-Huberman, um teórico da arte contemporâneo que estudou a fundo o processo e criação de Warburg, comenta que o Atlas Mnemosyne expressa um tensionamento de imagens dessemelhantes a fim de revelar relações ocultas, apresentando inúmeras possibilidades de interpretação. A ênfase não estaria na própria imagem, mas no arranjo que se cria na contradição e nas brechas entre as imagens. O Atlas seria uma forma de criação que mobiliza a imaginação com abertura ao múltiplo, ao diverso e ao risco.
Fazer surgir, através do encontro de três imagens dessemelhantes, certas "relações íntimas e secretas", certas "correspondências", capazes de oferecer um conhecimento transversal dessa inesgotável complexidade histórica (a árvore genealógica), geográfica (o mapa) e imaginária (os animais do zodíaco). (DIDI-HUBERMAN)
Indo um pouquinho mais longe, também podemos trazer para essa conversa o diálogo com a perspectiva de pensamento baseada em rizomas. Uma maneira diferente de olhar e compreender o mundo proposta pelos filósofos Gilles Deleuze e Félix Guattari.
Explicando beeem brevemente e sem me aprofundar muito, o rizoma é uma forma de conhecimento aberta à experimentação, que está sempre movimentando e expandindo em diversas direções. Trata da distinção e da conexão, explicando como coisas diferentes podem ser entrelaçadas.
Esse conceito foi inspirado pelo rizoma, na botânica, que é um tipo de caule subterrâneo que cresce horizontalmente sem uma direção definida, emitindo raízes e brotos ao longo de seus nós.
“Como um mapa que se espalha em todas as direções, se abre e se fecha, pulsa, constrói e desconstrói. Cresce onde há espaço, floresce onde encontra possibilidades, cria seu ambiente.” (Deleuze & Guattari, Mil Platôs I).
De desenhos de crianças, passando por Atlas imagéticos e rizomas, acredito que trilhar caminhos de conexões pela dessemelhança, pela contradição e pelas brechas fomenta não só nosso processo criativo, como nossa forma de pensar sobre as coisas do mundo. Desviamos do nosso olhar condicionado e moldado por estruturas para um olhar rizomático, aberto e múltiplo.
Faz sentido? Já experimentou pensar e criar dessa forma?
Essa edição é dedicada à minha tia Aléxia, citada no começo do texto, que além de promover muitos momentos rizomáticos e criativos na minha vida, é uma leitora ávida da minha newsletter.
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Um pouquinho sobre o meu livro
Quatro Mulheres e um Jabuti é um livro que venho tentando finalizar há muito tempo. Talvez seja o maior clichê de todos dizer que se quer algo porque é o sonho da vida. Não irei conseguir fugir desse clichê: publicar um livro é um dos maiores sonhos da minha vida. Ao mesmo tempo, é também uma forma de exorcismo, livramento, não só para mim, como para os personagens da minha história. Tenho certeza de que estão cansados da minha pessoa e ansiosos para chegar em novas moradas, que são as mentes, e quem sabe, os corações, dos meus futuros leitores.
Confira a sinopse:
Uma protagonista frustrada, uma narradora desiludida, uma escritora insegura, uma confidente de diário e um jabuti inconformado: em Quatro Mulheres e um Jabuti somos conduzidos através do tempo espaço existência de Celeste, uma jovem que tece seu cotidiano em uma fabulação inventada na tentativa de escapar do labirinto que está presa: uma vida adulta de merda. Uma transformação começa quando Celeste se muda temporariamente para uma casa peculiar, encarregada de cuidar das plantas e de um jabuti, se vendo imersa em segredos escondidos em um antigo diário. Essas descobertas instigam a reflexão sobre a bagunça do que está certo e as possibilidades para organizar as incertezas da sua vida. Acompanhada por duas mulheres misteriosas, uma escritora insegura e uma narradora desiludida, Celeste embarca em uma jornada para (des)encontrar o seu (anti)lugar no mundo, a saída do labirinto.
O que rolou antes por aqui :
Música para as plantas
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OuLiPo: restringir a escrita para libertar palavras
Nos estudos para escrita da minha dissertação, entrei em contato com uma artesania literária que, em sua essência, restringe a escrita para libertar as palavras. Foi engraçado assimilar a restrição como princípio fundamental para uma criação libertadora,
Um beijo e até a próxima!
Uso o instagram para compartilhar um pouco das minhas narrativas: meu trabalho como roteirista e escritora, minhas artes, paisagens, pessoas, plantas, animais, livros, filmes, memes, divagações, (des) processos, desabafos e aleatoriedades de uma mente geminiana. Fique à vontade para me seguir por lá também.
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